sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Uma história simples...(017 – Interrupção...)

Às duas da tarde bateram na porta. Ainda meio zonzo de sono fui abrir. Depois de ir embora do hotel dela passeei pela cidade durante algum tempo, tentando juntar as peças do quebra-cabeças. Muita informação a ser processada em tão pouco tempo.

Na porta, Ali me sorriu e disse que tinham vindo entregar a passagem para Nova Iorque. Para Nova Iorque? Porque preciso de passagens para Nova Iorque? Casamento da sua irmã, lembra? Ah, é verdade. Deixa aí em cima da mesa, eu vejo depois. Precisam de você também na escavação 2. As paredes não parecem em bom estado em o pessoal está com medo de avançar, medo de desmoronamentos. Ok, dá-me 20 mn e eu desço e vamos.

Tomei um banho rápido, vesti-me, liguei para a recepção para pedir um sanduíche e saímos em direção às pirâmides. Durante o caminho eu pensei outra vez na noite anterior e pedi para o Ali passar frente ao hotel da Taby. Não sei por que, fiquei com vontade de vê-la antes de ir para fora da cidade. Chegamos ao hotel, passei pelo balcão e perguntei por ela. O senhor que atendia respondeu que ela tinha saído, mas que parecia ser por pouco tempo. Eu não podia esperar. O trabalho que eu tinha de fazer na escavação precisava do sol e este ia se por em pouquíssimo tempo. Pedi ao senhor que lhe transmitisse uma mensagem quando ela voltasse. Como eu estava com pressa, ditei o texto no meu inglês nova-iorquino, enquanto ele tentava escrever tudo antes de eu sair voando do hall de entrada. “Há coisas que dificilmente podem ser consideradas coincidências. E de qualquer forma eu nem acredito no destino. Espero te rever em breve. Beijo.”.

Saí do hotel sem esperar pela resposta do empregado. Algures em mim estava a vontade de não me cruzar com ela naquele momento. Não saberia o que dizer. Mas sabia que não podia deixar de conversar com ela. Depois de tudo que tinha acontecido eu ainda pensava que algumas coisas mereciam um pouco de conversa. Até da minha parte. A forma como reagi ao caso entre a Isa e o Tiago eu fechei-me, senti raiva, quis desaparecer. Foi um conflito, pois eu me sentia profundamente incoerente com o que sempre tinha apregoado. Não queria magoar ninguém, não queria me vingar de ninguém, não queria ver ninguém. Com o tempo digeri parte dos acontecimentos. A Isa se escondeu de mim durante uns tempos, com medo. Sempre fui o impulsivo dos dois. Eu queria que agente conversasse. Com ela eu ia poder conversar. Com meu irmão, não. Se problema houvesse seria entre a Isa e eu. Esse era o mais importante. Mas aquela conversa nunca aconteceu. Levei tempo até ultrapassar minimamente a dor, embora ela nunca passe completamente. A sensação de vazio se mantém lá, presente, emboscada e protegida por uma camada de cinismo.

Íamos a caminho de Gizeh, eu submerso nos meus pensamentos e o Ali tentando navegar o carro pela multidão do centro da cidade. Em pouco tempo descíamos o Nilo pela Komish Al Nile para poder pegar a Al Ahram em direção à esfinge. Naquele momento da tarde o transito estava estranhamente fluido e Ali acelerou um pouco na esperança de ganhar tempo de luz natural no sítio da escavação.

Tínhamos acabado de passar para o outro lado do rio, quando o carro da frente travou de repente. Só me lembro de ter gritado atenção para o Ali, ao mesmo tempo que instintivamente fingia travar. O nosso carro derrapou e bateu lateralmente no carro da frente. Foi na minha lateral. É a ultima coisa que me lembro... E apaguei.


------------------------------------
David
------------------------------------

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Uma história simples...(016 – Confusa...)

Desde aquele beijo, sempre que ouço essa música me lembro deles. E quanto mais o tempo passa, menos sei em quem penso exatamente. É como se os dois tivessem se transformado em um ser completo. O que eu odiava em no Ezy, o Tiago tinha de perfeito. O que faltava no Tiago, o Ezy mostrou que seria capaz de suprir. Por que o Ezy me beijou daquela maneira tão inesperada, como algo momentâneo e até indesejado? Não entendo. Nunca eu tinha percebido nenhuma insinuação, nenhuma atração, nada por parte do Ezy. Um belo dia, nos encontramos e ele me abraçou e me beijou como se eu fosse a mulher de sua vida, me apertando contra seu peito, como quem quisesse garantir a posse...

Logo ele, em nada possessivo. Ele que vivia uma relação tão bonita e leve com a Isa. E aquele beijo me provocou sentimentos inesperados. Teria sido tão mais simples se Tiago não viesse me sufocando com seu ciúme, sua posse, seu domínio. Eu procurei naquele beijo a liberdade que Tiago me tirava. Procurei no Ezy a única coisa boa que ele podia me dar, porque todo o resto já tinha sido dado por Tiago. Eu gostei. E me odiei por isso. E nunca mais consegui encarar o Tiago.

E, desde então, sempre que quero pensar na vida, me afastar do mundo, coloco essa música no meu fone de ouvido e fico alheia à humanidade. É estranho caminhar pelas ruas do Cairo, ver a movimentação das pessoas, a agitação dos carros, e me sentir em câmera lenta, em uma outra dimensão. Entre eles, mas fora deles, porque sou carregada por essa música repleta de harmonia, que tocava no momento em que duas histórias de amor se perderam por um beijo.

Eu sei que devia deixar os dois e as duas histórias no passado. Mas não consigo. E, por mais contraditório que pareça, é pensando nessas histórias, ouvindo a música de fundo do fim delas, que encontro minha paz.

Preciso mudar de rumo. Tenho que sair do Cairo. Já fiz mais do que estava previsto. Cumpri minha agenda de vontades e ainda tive o encontro com o professor Richard Lebeau.

É isso. Vou embora. Mas não vou voltar para casa. Tenho ainda algumas reservas do apartamento e do carro que vendi. Vou para outro lugar. Um lugar que nem sei ainda. 

------------------------------------
Sandra
------------------------------------ 

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Uma história simples...(015 – Entorpecido...)

A chegada foi caótica, mas eu gostei do encontro com a cidade. O lado aparentemente desordenado da cidade permitiu-me um anonimato muito bem-vindo. Contratei um guia logo no aeroporto e ele me levou para um hotel mais perto do centro. A única incógnita era como ia fazer para encontrar o meu irmão nesta cidade tão diferente de tudo o que conhecia. Lembrava-me ter ouvido falar por alto de um bazar no centro da cidade, então deixei as coisas num hotel perto do aeroporto e dirigi-me lá, com a esperança de conseguir algum indicio. Durante a viagem eu só conseguia pensar no que dizer quando encontrasse o meu irmão. Interessantemente não me passava pela cabeça a possibilidade de não o encontrar, mesmo numa das cidades mais caóticas que conheci. A minha esperança era que aquela coisa que contam sobre os instintos e ligações entre gêmeos fosse mesmo verdade. Sem isso as chances de encontrá-lo eram reduzidíssimas.Uma vez instalado no hotel, saí para o centro da cidade, com a esperança de ter alguma revelação. Eu pensava na palavra epifania, que tinha aprendido pouco tempo antes. Epifania: uma revelação. Era o que eu precisava naquele momento.

Durante esse tempo morto eu tentava juntar as peças dos acontecimentos, e sobretudo, tentar construir algum raciocínio para a conversa com o Ezy. Eu não entendo o que aconteceu. Beijei a namorada dele e ele viu. Depois disso não disse mais nada, simplesmente desapareceu. A Taby também. Dias depois ele voltou a aparecer e eu só conseguia dizer que não tinha acontecido nada. Sim, simplesmente o pânico. Até hoje eu não faço ideia se ele conversou com a Isa depois disso. Tenho a certeza que ele conversou com a Taby porque ela nunca mais quis me ver. Daquele momento em diante nunca mais atendeu os meus telefonemas, não me recebia em casa, deixou de ir aos mesmos lugares etc. Assim. Como o cortar do cordão umbilical.

Com o recuo do tempo eu me pergunto se não é melhor assim. Algumas vezes eu senti um tipo de “deslocamento”, sensação de estar fora do lugar. Para o resto do mundo o casal formado pela Taby e eu era o típico casal de filmes. Antes do incidente eu me sentia meio preso nesse papel, nesse desígnio das coisas. Parecia que estava tudo pronto para ir num rumo sobre o qual eu tinha pouco domínio. O meu irmão ficava furioso quando eu dizia-lhe isso. Ele repetia a quem quisesse ouvir que a escolha existia sempre e que as pessoas que diziam não ter escolha eram simplesmente pessoas desconfortáveis com as escolhas que faziam. Ele dizia isso com tanta propriedade...e a Taby concordava com ele. Em algumas coisas eles tinham opiniões similares, essa era uma delas. Porque nas demais ele passavam a vida a discutir posições antagônicas. Eu tinha mais dúvidas, muitas dúvidas. Ezy exalava certezas. Até no abandono dos estudos ele tinha a certeza de ser a coisa certa. Eu sentia inveja. Enquanto ele exibia uma postura eu-faço-o-que-quero-e-estou-nem-aí-para-o-resto, eu ia fazendo o que esperavam de mim, timidamente.

E veio o “incidente”. Ou acidente, chamem como quiserem. Eu tento colocar a culpa no álcool da festa...mas não me convenço. Eu tinha bebido, sim. Como a Isa. Mas eu estava lúcido o suficiente para saber o que estava a fazer, assim como imaginar as consequências...

É como se uma vez eu quisesse romper com esse longo rio tranquilo que parecia ser a minha vida...

------------------------------------
David
------------------------------------

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Uma história simples...(014 – Interlúdio 1)

E assim foi acontecendo esta história. Essa coisa deles serem gêmeos, de terem partilhado os mesmo amigos, os mesmos espaços, a mesma educação, etc. não é nada. Eu segui a história inteira e sei de cada detalhe, da realidade, do que realmente aconteceu, sem o filtro da percepção de cada um deles. Um enorme mal-entendido foi o que aconteceu. Desde os primeiros beijos havia uma coisa que não batia certo nesse quatuor. Eu achava que estava tudo perfeito demais, como a calma antes da tempestade. E então chegamos a isto: três dos quatro se encontravam ao mesmo tempo no Cairo, mas com relativo desconhecimento do paradeiro uns dos outros. Ezy sabia que a Tabata estava lá e o Tiago imaginava que o Ezy estaria por lá também. Com o recuo acabo por reconhecer que afinal a história não tinha sido assim tão simples. Ou sim? Sim, acho que foi simples. Nós, humanos, somos entes que gostam de complicar as coisas simples. É como uma premissa de qualquer relacionamento, seja ele amoroso, amizade, profissional, o que seja. Aqui entre nós, aquela coisa de que homens e mulheres são animais diferentes é uma ilusão. Somos todos iguais. Queremos todos amar e ser amados, desejado, queridos. Temos apenas formas diferentes de expressar essa mesma realidade. Somos animais básicos com tendências esquizofrênicas. Simples assim. Se conseguíssemos comunicar entre nós sem os filtros que a sociedade – da qual somos a única matéria bruta – nos impõe, depois de um período de adaptação tenho a certeza que as coisa ficariam ótimas. No caso especifico desta historia “simples” creio que cada um já imaginou um cenário do que pode ter acontecido para que dois casais apaixonados e quatro amigos se separassem assim tão violentamente.

Por mais que a Tabata quisesse se desligar do passado – na verdade, de uma parte do passado – ela sabia pertinentemente que não ia ser tão fácil. Aliás, todos eles estavam mais ou menos presos a esse mesmo passado. Da Isa eles pouco ou nada sabiam. Eu posso vos contar. De fato ela tinha fugido para a Califórnia e, depois de uma tentativa de suicídio e uma depressão – para uns foi nessa ordem, mas o bom senso dita que tenha sido o contrário – tinha voltado lentamente à vida graças à literatura e ao budismo. Ela manteve um diário meticuloso de todo esse processo e o livro que acabou por escrever fez algum sucesso. Não o suficiente para os outros ouvirem falar, mas o suficiente para pagar as contas durante uns escassos anos. O suficiente para ela decidir viajar durante um tempo. Não, ela não estava no Cairo. Na verdade ela queria ficar o mais longe possível de Nova Iorque e Cairo. Filosofia e literatura atraíram-na para Paris. Os outros estavam alheios a isso tudo. Mas todos continuavam de alguma forma conectados.

O que tinha acontecido?

As minhas lembranças já não é o que era, mas recordo-me que o Ezy repetia sempre a torto e a direito que não era ciumento, que não entendia o sentimento, que ter ciúmes era como um ser humano se sentir dono do outro e isso era resquício de escravidão etc, etc. E a Tabata concordava com ele. Aliás, se a memória não me falha, era a única coisa em que eles concordavam. O resto do tempo Ezy gastava a tentar tirar a menina do sério com as suas declarações grandiosas e ocas. Mas nesta coisa do ciúme eles concordavam. Os dois outros já eram mais reservados sobre o assunto, acreditando que o ciúme existe em todo o mundo e que alguns lidam melhor ou pior com o dito sentimento.

Cheguem ás vossas próprias conclusões...

------------------------------------
David
------------------------------------

domingo, 5 de junho de 2011

Uma história simples...(013 – Memórias...)

Passei bem os últimos dias, cumprindo o que estava previsto em minhas anotações de "para visitar no Egito". Consegui até mesmo agendar um encontro com o historiador Richard Lebeau, que veio ao Cairo para uma conferência sobre história das religiões. Quando vi seu nome indicado no folheto da conferência, não resisti e fiz minha inscrição. Foi muita coincidência estar aqui nesse momento. Eu tinha lido seus livros sobre o Oriente Médio na faculdade e tinha muitas dúvidas, muitos questionamentos a fazer. Após sua palestra, aproximei e me apresentei: "Tábata, formada em história e sua fã". Que ridículo, mas foi assim mesmo...

Apesar da péssima apresentação, foi empatia à primeira vista. Conversamos por mais de meia hora ali, em pé, até que os organizadores do evento pediram licença para fecharem as salas... saímos para continuar a conversa em um café e o encontro terminou com um jantar no tímido Alfi Bey, onde pude experimentar cozinha egípcia tradicional, acompanhada por um especialista no assunto. Foram horas falando sobre história, evolução da humanidade, rumos das religiões... Foram momentos inesquecíveis.

Após o jantar, Richard me deixou no hotel, trocamos endereços de e-mails e promessas de continuarmos nossas conversas sobre história, historiadores, civilizações e religiões via internet. Ao entrar no elevador do hotel, ouvi a risada de Isa, grande amiga que fiz na faculdade. Voltei para procurá-la, em um gesto instintivo. Então, me dei conta da bobagem. Só poderia ser uma risada parecida... há tanto tempo eu não a ouvia. Desde que ela mudara para a Califórnia, ao fim do curso de Filosofia. Verdade que tínhamos pensado muito em vir para o Cairo, juntamente com Tiago e seu irmão. Mas não aconteceu. O grupo se dissolveu antes e ela nem imagina que eu estou aqui agora.

De volta ao quarto só consigo pensar nessas imagens do passado que me perseguem aqui. Outro dia o Tiago, no café. Agora, a Isa. Pessoas tão presentes por tanto tempo, que se perderam de forma tão rápida, tão contundente. Uma amiga, um namorado, uma aventura... Tudo é passado e lá deve ficar.

Racionalmente eu sei que é assim. Mas na prática, não consigo fazer. É como se quisesse estar com eles novamente, a todo instante, fazendo a viagem que sonhamos e tanto falamos. Queria que nada tivesse acontecido como foi, que nada tivesse estragado nossos planos, nada tivesse mudado o rumo tão simples de nossa história.

E com isso voltam minhas alterações de humor. Por que, mesmo sendo tão jovem, e com a consciência de que ainda vou ter muitos amigos, namorados e planos perdidos pelo caminho, só consigo pensar agora que o melhor seria acabar com tudo, com toda essa história? Ou, ao menos, nunca mais voltar a lugares onde já estive e nem seguir pelos lugares que planejei com eles?

------------------------------------
Sandra
------------------------------------

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Uma história simples...(012 – Isolado...)

Ele foi embora hoje. Depois de várias conversas para tentar dissuadi-lo da viajem, Ezy foi embora. A Luana ainda me disse que eu teria sido a única pessoa a convencê-lo de ficar. Mas ela não sabia de tudo. Há coisas que não consigo pedir ao Ezy. Estou em dívida... a nossa história foi suja. Por mais que sejamos irmão gêmeos eu sinto que o fim da nossa amizade fraterna está ainda por um fio. O que aconteceu entre a Isa e eu foi como uma pequena bomba de nêutrons naquele pequeno grupo. E como nunca chegamos a falar sobre o assunto, ficou tudo muito tabu, muito encoberto. Cada um se recolheu no seu canto para lamber a feridas e recuperar forças. Nem o Ezy e eu conseguimos conversar. Eu teria preferido que ele me batesse, me insultasse, fizesse alguma coisa. Mas não. Simplesmente evitou tocar no assunto e a vida continuou como se nada fosse. É estranhíssimo porque parece que esse momento das nossas vidas simplesmente deixou de existir. E como o resto da família não sabe de nada e as meninas simplesmente desapareceram do nosso circulo de amigos, ninguém acha anormal. A Taby nunca mais atendeu os meus telefonemas, deixou de freqüentar os lugares e pessoas que tínhamos em comum. Ainda mora no mesmo bairro, uma vez fiquei umas horas frente à casa dela só para ver se ela estava bem. Ela chegou com um grupo de pessoas que eu não conhecia e entrou em casa. Eu esperei um pouco e fui embora. Não teria sabido o que dizer.

A Isa também desapareceu. Não sei se ela e meu irmão chegaram a conversar alguma coisa. Só sei que ela se mudou para outro estado. Com ela tinha acabado a graduação dela, foi para a Califórnia, salvo erro, para uma especialização na UCLA. Eu também não consegui sequer devolver os CDs que tínhamos trocado.

E Ezy foi para o Cairo. A idéia dessa viagem para o Cairo pairava no grupo desde que a Taby tinha falado no assunto. A proposta era uma viagem em grupo. Não aconteceu assim... ele foi sozinho, no que eu entendo ser uma tentativa teimosa de encerrar um ciclo, talvez. Passaram-se meses sem noticias dele. A família estava preocupada mas eu sabia que ele estava bem. O problema era que a Lua ia se casar e queríamos tentar reunir a família toda pelo menos uma vez. O Yuri ia voltar da Europa onde estava num desses student-exchange, a Lua já aqui estava, mas do Ezy, nada. Ele nos tinha avisado para só entrar em contato com ele em caso de urgência. Tentamos várias vezes para o numero que ele nos tinha passado e nada. Por mais que eu dissesse sempre para a família que ele estava bem, que não precisavam se preocupar, a verdade é que eu desde a partida dele que sentia uma angustia permanente. Não consegui distinguir se era mesmo unicamente a questão do afastamento – era a primeira vez desde o nosso nascimento que estávamos tão longe – ou se era a continuação da reação ao drama da separação.

E foi assim que surgiu a idéia de eu ir buscá-lo lá. Achei que as 14 horas de viagem de volta não poderiam ser feitas em total silencio e seria então uma oportunidade de ajustarmos contas sobre o sucedido. Essa foi o plano que me fez passar por casa numa tarde de novembro, arrumar meia dúzia de roupas numa mochila, torrar parte do cartão de credito numa viagem para o Egito, sem pensar em avisar absolutamente ninguém. Com o recuo reconheço que deve ter sido assustador para quem ficou sem noticias. Sobretudo porque eu sempre tinha sido tão certinho, compenetrado. Mas a causa era boa. Assim de repente desapareci do mapa durante 2 ou 3 dias, o tempo da viagem que deu a volta ao mundo até finalmente chegar ao Cairo.

------------------------------------
David
------------------------------------

terça-feira, 26 de abril de 2011

Uma história simples...(011 – Escondido...)

Não era normal eu ver a Taby. Nessa cidade? Como assim? Eu me perguntava se ela me tinha visto ao mesmo tempo em que dançavam na minha cabeça as imagens do fim daquele grupo. Tinha sido um pequeno inferno. Mas aqui estava eu, anos e léguas de distancia desses acontecimentos, e me deparo com ela. Com o recuo do tempo até fazia algum sentido ela estar no Cairo. Quando ainda existia o pequeno grupo, várias vezes tínhamos concordado que Cairo seria um ótimo lugar para conhecermos. Eu só não queria acreditar na coincidência cósmica que nos colocava na mesma cidade e ao mesmo tempo. Pedi ao Ali que tentasse descobrir onde ela estava hospedada e o que fazia aqui. Ela devia estar com 25 anos, agora? Ela era dois anos mais velha que nós.

O Ali descobriu que o nome do hotel dela e me disse que parecia estar sozinha, a turismo. E agora eu pensava se aquela historia de me sentir observado, de sentir a presença do Tiago, não era isto mesmo, não era precisamente a Taby.

Em algum momento eu teria que de contar o que aconteceu com aquele grupo. Mas não é tão fácil assim... As relações humanas são coisas tão complexas porque, contrariamente às relações entre animais, possuem camadas. E essas camadas são quase sempre opacas, embaçadas, não facilitam o vislumbrar do que está do outro lado. As pessoas nunca são verdadeiramente transparentes, verdadeiramente honestas. É preciso sempre um filtro. É o que me disseram. Talvez seja esse filtro precisamente a essência do “viver em sociedade”. Um pouco contraditório com a eterna demanda por sinceridade, mas bom. Adiante.

Quando terminaram os nossos devidos romances, ficou um acordo velado que não nos veríamos mais. Tinha sido um fim tão barulhento, intenso como o namoro em si, que o balde de água gelada calou todos num piscar de olhos. Eu nunca mais vi nem a Isa nem a Taby. Nem procurei saber se tinham mudado, se continuavam na mesma universidade... e como o Tiago nunca me disse nada, ficamo-nos por esse pacto de silencio velado. A vida continuou...

Até agora.

Resolvi que tinha que falar com ela. Não fazia sentido nos encontrarmos tão longe de casa e fingir que nada aconteceu. Não nos devíamos nada. Poderíamos sentar, ultrapassar juntos o efeito de surpresa. Uma de duas coisas poderia acontecer. Depois das amenidades, ou nos encontraríamos envoltos num incomodo duplo monólogo pontuado por tímidos “pois é... tu, por aqui?...que coisa, né?... pois é...e então?... bela cidade, o Cairo...vai chover...e então...”, ou então algo mais sólido existe e servirá de base para, talvez, uma amizade mais completa? Enchi-me de coragem e fui até ao hotel dela, perguntei por ela, mas o atendente me disse que ela tinha saído para jantar. Procurar por ela pela cidade estava fora de questão. Sentei-me no lobby do hotel, pedi um chá, abri o meu livro e esperei. Não conseguia me concentrar muito no livro porque a minha cabeça estava muito mais focada em tentar entender porque raio a Taby estava no Cairo e o que eu ia bem poder dizer quando nos encontrássemos. Depois de um par de horas nesse exercício de funambulismo mental decidi ir embora. Já era tarde e no dia seguinte eu tinha que voltar para o trabalho. No fim dessa semana eu tinha decidido fazer o tal passeio até Luxor. Isso envolvia trabalhar um pouco mais durante os próximos dias, tanto para recuperar o tempo que eu tinha perdido com a minha letargia, como para adiantar alguma coisa para as semanas seguintes. Levantei-me, passei pelo balcão do hotel com a intenção de deixar um bilhete para ela. Eu estava em pé no balcão à espera de um pedaço de papel para escrever, quando ela chegou. Por uma razão que até hoje não sei explicar, a minha única reação foi de me esconder. Foi como um aquele reflexo do joelho quando o médico bate com o martelo, sabem? Uma coisa completamente instintiva, desastrada e descoordenada. Escondi-me atrás de uma das pilastras do hotel. Ela despediu-se do que me pareceu ser um homem, na entrada do hotel, e entrou. Passou pelo balcão, pediu pelas chaves, perguntou alguma coisa, agradeceu e se dirigiu para o elevador. Acompanhei cada gesto, cada passo, sob o olhar divertido e intrigado do balconista. O elevador chegou, ela entrou e de repente saiu de novo e o olhar dela fez um 180 graus na frente, como se procurasse por alguma coisa. Por uns segundos que pareciam intermináveis ela escrutinou o hall do hotel e a entrada do restaurante. Depois e sacudiu os ombros, sorriu, entrou no elevador e subiu.

Fiquei escondido mais uns minutos para recuperar os sentidos, rasguei o papel onde ia escrever o recado, fiz sinal ao balconista que eu NÃO tinha estado lá, e fui embora. Que filme patético tinha sido esse...

------------------------------------
David
------------------------------------

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Uma história simples...(010 – Linguagem corporal...)

A Isa e eu começamos o namoro oficialmente, mais ou menos um ano depois desse primeiro encontro. Foi uma história engraçada. Na altura, eu tocava bateria numa banda de rock em Brooklyn. Tocávamos um pouco de tudo, como que em busca ainda de uma identidade, de uma linguagem. A Isa tinha uma boa rede de relacionamento que poderia nos ajudar a encontrar alguns lugares para tocar ao vivo. Daí a ela se oferecer para nos agenciar, foi um passo. O que aconteceu na realidade foi ela se apaixonar pelo guitarrista e cantor. A minha sorte é que o jovem não tinha interesse nela. Sobrou para mim. E não me queixei. Começou no dia do aniversário dela. A verdade é que eu a achava bonita, mas nunca tinha pensado na eventualidade da possibilidade de namorar com ela. O que aconteceu é que o encontro de aniversário num pub foi muito divertido. A banda inteira estava lá, o Tiago, a Taby, um monte de gente que eu não conhecia. Bebemos e falamos horas e no meio da noite eu me surpreendi a cruzar olhares com ela. E eu pensava para comigo que tinha que apreender a ler a linguagem corporal das pessoas. Nunca soube fazer isso. Se que em algum momento os nossos olhares se cruzaram e sorrimos um para o outro. E eu pensava: “acorda!”

No meio a conversas e gargalhadas, a tarde se pintou de noite. Foram chegando mais pessoas e depressa as mesas ficaram sem espaço para todos. Era um daqueles bares com uma decoração mais moderninha, com um único banco comprido que dava a volta em todas as paredes. Frente a esse banco contínuo, estavam mesas de quatro lugares – 2 de cada lado – e mais cadeiras e puffs (é assim?) do outro lado. Na TV devia passar ultimo jogo do campeonato de basebol ou assim, ninguém prestava atenção. A Taby e eu estávamos sentados no banco contra a parede, entre amigos e conhecidos, e a Isa estava numa cadeira de frente para nós, um pouco na diagonal. Chegaram mais amigos dela e ela pediu para nos apertarmos no banco para que ela e o Tiago pudessem se sentar e fazer espaço. Com algum esforço o Tiago consegui se sentar mas não dava para mais. E eu brinquei “aqui já não dá, só se for no colo de alguém!”. Ela sorriu, disse “ok!” e veio se sentar no meu colo!

Passei as duas mais em pânico da minha vida. Eu já disse em algum lugar que sou tímido? Sim, sou capaz de tocar, cantar, falar em público sem problema. A minha timidez é outra. Ela se sentou, minha voz mudou, meu corpo enrijeceu, suei frio e a minha mão tremeu. Escondi isso tudo por baixo de toneladas de piadas que faziam rir todo o mundo, a minha mão mal tocava nela. Anos depois ela me contou que tinha feito de propósito e só sentia a minha mão direita, muito de leve nas costas dela. E era o que eu tinha conseguido fazer. Para não ficar numa posição que pareceria que eu a estava a abraçar, eu tinha colocado a mão esquerda na mesa e a outra nas costas dela, quase como suporte. Pelo menos era a impressão que transmitia. Na realidade eu mal a tocava. Nesse momento eu ainda me perguntava se estava a ler corretamente. Sim, sim. Perguntei-me isso varias vezes durante a noite.

Do canto do olho eu sabia que a minha banda se divertia muito com a situação. Assim como a Taby e o Tiago, aliás. Combinamos que iríamos, no dia seguinte, passear alguns bares que ela conhecia para falar com o dono e tentar arranjar uns gigs para a banda. Enfim, depois de umas horas naquela posição super desconfortável, uns convidados foram saindo e a Isa pôde se sentar no banco, desta vez ao meu lado. A noite foi se acabando e decidimos ir embora. No momento da despedida aconteceu uma coisa estranha, ela abraçou todos e quando chegou em mim, pegou a minha mão e olhou dentro dos meus olhos. O meu cérebro a mil à hora “o que é que ela me está a dizer agora? O QUE É QUE ELA ME ESTÀ A DIZER AGORA!?!?”. Nesse momento o Tiago me dá um empurrão nas costas e acabamos abraçados. Abraçados. Só isso. Um abraço apertado, com todo o corpo, que pareceu durar horas. Depois soube que tinha sido uns intermináveis três segundos. Sorrimos um para o outro e nos despedimos com um tímido “até amanhã”...
------------------------------------
David
------------------------------------

segunda-feira, 21 de março de 2011

Uma história simples...(009 – Assimilações múltiplas...)

Conheci a Isa numa tarde livre. Ou melhor, numa tarde em que eu tinha decidido faltar. Eu estava sentado no pátio da universidade, o Tiago tinha acabado de sair para uma das aulas dele, salvo erro era matemática, curso de arquitetura. Ao ir embora eu tinha ficado na conversa com a Taby, a namorada dele na altura. Falávamos por falar porque ela e eu não nos curtíamos muito. Ou tínhamos a sensação que não nos curtíamos muito. Com o recuo do tempo confesso que nem sei. A verdade é que não conseguíamos sair das conversas triviais e superficiais. Isso algures em 94. Será? É. Deve ser por aí mesmo porque eu estava no meu primeiro – e único – ano de economia.

A Taby estava num ano mais avançado que nós, ela era um pouco mais velha que nós. Salvo erro ela estudava história. E nessa tarde, depois da saída do Tiago, apareceu uma amiga dela, a Isa, mais ou menos da mesma idade. Ela se apresentou e depois se aliou à Taby para divertidamente destruir as minhas teorias filosóficas sobre o fantástico destino da humanidade. Depois de uma primeira reação de rejeição, acabei por entender e entrei no jogo. Passamos a tarde juntos, até o Tiago se sair das aulas. Falamos de tudo um pouco, reconstruímos o mundo algumas vezes, para destruir logo depois com teorias baseadas na física quântica. A Isa estudava filosofia na altura. As duas adoravam os livros de Garcia Marquez, a musica de Nirvana e Bob Marley, e os filmes de Antonioni, Kubrick e Godard. Normalmente eu me opunha à escolha de Antonioni. Gostos diferentes.

A paixão não foi repentina e avassaladora. Foi mais uma amizade que se transformou pouco a pouco. Ainda bem, porque tenho pouco jeito com sensações fortes sob as quais não tenho controle. A tendência é entrar em pânico. Começamos o namoro uns meses depois de nos conhecermos, depois de muitas conversas paralelas. Depois de eu abandonar a universidade, eu me encontrava com eles à tarde, no village, para café e conversas. Uma vida boemia que servia de fertilizante para uma aproximação com ela. Durante esse tempo, Taby e Tiago também viviam inseparáveis. Aliás, tenho a sensação que eles dois foram o cimento da nossa relação. O Tiago estudava com uma concentração invejável, assim como as meninas, aliás. Com eles, mesmo fora da estrutura convencional da educação, fui aprendendo várias coisas. Interessei-me pelas construções fantásticas de Lloyd Wright assim como pela personalidade dele, reconheci-me em algumas partes do pensamento de Kant e a visão dele sobre a menoridade humana, fiz mil perguntas sobre esse pedaço fascinante de história chamado de segunda guerra mundial – que dificuldade eu tinha, ou ainda tenho, em pensar que era a “segunda”... perguntava-me se haveria uma terceira, se existia algum numero onde a ficha cairia e não haveria mais guerras mundiais – interessei-me pela egiptologia... aliás, isso foi um fenômeno de grupo. Passamos horas a discutir as vidas doa faraós e as dinastias que construíram as pirâmides e a esfinge. Foi um período rico.

E passamos juntos os três anos seguintes.

Como é que este grupo se desintegrou? Faz parte da tal história simples...


------------------------------------
David
------------------------------------

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Uma história simples...(008 – Sonhos (I))

Às vezes a vida prega cada peça. Eu não queria estar aqui. Toda a minha –curta vida – eu me tinha convencido que iria ser piloto. Piloto comercial, de jato , de helicóptero, de balão, de qualquer porcaria que voasse. Ainda durante o fim do secundário descobri que para isso eu teria que estudar muita matemática. Até aí tudo bem, não fosse a imbecil da professora do penúltimo ano. Conseguiu me tirar todo e qualquer gosto pelas ditas “exatas”. O sonho de voar teria que ficar para dias melhores do ponto de vista do dinheiro, zi mânei! E para ter mânei, eu tentei estudar economia. Péssima ideia. Não deu. Então assumi que não estudaria mais e tentaria ser feliz. Lembro-me de um sonho recorrente que tive durante o inicio da minha segunda década na terra. Não é bem um sonho. É mais uma parte dele. Eu, sozinho, em pé à beira de um precipício. Ninguém por perto, nem um ruído humano, apenas o zumbido dissonante do vento e o seu eco nas paredes secas da montanha. Parecia o Grand-Canyon. Estou eu em pé frente à falésia e um ímpeto para saltar. Mas não me lembro jamais ter treinado para saltar. Percebo que estou todo equipado com o que parece ser um wingsuit e pára-quedas, mas não consigo visualizar os gestos necessários para fazer funcionar a parafernália toda. Só sei que algo me dizia “vamos! Salta logo!”. E embora tivesse tido o sonho varias vezes, com pouquíssimas variações – a luz variava um pouco, talvez por algumas vezes ele acontecer de manhã cedo e outras no fim da tarde – lembro-me que as sensações eram sempre identicamente intensas. Estomago às voltas, garganta seca, suores frios... E sistematicamente eu aceitava o desafio e saltava, com um grito surdo que só eu ouvia. E caía. Caía cada vez mais depressa, mas ao mesmo tempo com um pouco mais de controle sobre o vôo... ou a queda controlada. Sentia o vento passar embaixo das asas e a sustentação me movimentava para frente. Os automatismos apareciam progressivamente e eu sentia um pouco mais de confiança. E pensava naquela frase do filme “O ódio” de Kassovitz: “até aqui, está tudo bem. Até aqui está tudo bem”. À medida que vou sentindo mais confiança, as passagens rasantes vão ficando cada vez mais perto das paredes da montanha. Não faço idéia de quanto tempo dura o vôo. De repente sou apanhado por uma corrente quente ascendente que me projeta umas centenas de metros para cima e na subida perco o controle do vôo e por alguns milésimos de segundos perco o sentido de orientação, por causa do twist. Nesse momento tento respirar para acalmar e procuro pelo extrator só que na reviravolta ele ficou completamente enrolado entre a bolsa e o wingsuit. Lembro-me que ainda tenho o dispositivo de abertura automática do pára-quedas frontal. E a queda recomeça. Desta vez queda mesmo porque um sentimento de pânico me impede de pensar em seja o que for. E fico nesse estado durante o que me parece uns segundos intermináveis, com o chão que se aproxima em alta velocidade. O altímetro sinaliza que entrei na altura mínima para abrir o pára-quedas, ouço um clique atrás de mim e acordo...

Agora, com o recuo do tempo não me lembro se esse sonho não aconteceu no momento que eu conheci a Isa – de Isabella. Acho que foi mais ou menos nessa época. A coincidência seria bem-vinda e elucidativa...
------------------------------------
David
------------------------------------

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

É. Um blog só para isso...

Tínhamos começado no blog kaleidoskope o exercício de escrita colaborativa. A ideia era/é: uma pessoa escreve uma parte, outra pessoa escreve outra, e assim por aí a diante. É obvio que tem de haver alguma coerência entre as partes e eu tentarei - com a vossa ajuda, claro - fazer esse papel de coordenação.

No fim da linha, quem sabe se não transformamos tudo num livro? Já ouvi ideias mais esdruxulas!

E o exercício começou com o conto "Uma história simples". Já temos 6 episódios/partes, fizemos uma pausa - longa - desde o ultimo episódio, mas vamos voltar aos trabalhos!

Como o supracitado blog vai acabar por tratar de muitas outras coisas - entre as quais esta ideia - decidi separar um canto só para as histórias. Ao fazer assim, espero que a leitura, gestão e participação fiquem mais simples.

Próximo passo? Passar os episódios do "Uma história simples" para aqui.

Mãos à obra!

PS: para quem não gosta de ler, agora tenho 4 blogs. Falem-me de coerência :D